quarta-feira, 13 de julho de 2011

Teoria dos afetos

A teoria dos afetos remonta à Antiguidade, pois para os gregos um determinado modo musical poderia influenciar os homens de diferentes maneiras, podendo a música servir de forma ético-moral. Por exemplo, o modo Dórico poderia ser usado graças a sua serenidade, o Frígio por suas características valentes e guerreiras e já o modo Lídio era desaconselhável por possuir características afeminadas (GATTI, 1997, pag.16).
A palavra affectus (verbete latino) tem a ver com a palavra grega “pathos” que significa cada estado do espírito humano, sofrimento e emoção da alma. Platão enumera quatro afetos que são prazer, sofrimento, desejo e temor; já Aristóteles diferencia onze tipos baseados na mistura de prazer e sofrimento: desejo, ira, temor, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Esta visão está proposta na obra Retórica de Aristóteles. Segundo ele, a música possuía qualidade de transmitir impressões e criar diversos estados de ânimo.
Durante o Renascimento, período em que ocorreu uma mudança de pensamento devido ao Humanismo, o retorno da cultura greco-romana e da disseminação dos conhecimentos, houve uma prática (sec. XVI) em que os compositores passaram a ter uma preocupação em como representar o texto na música. Isto ficou conhecido como música reservata, onde o sentido musical deveria ajudar no entendimento do conteúdo textual. A ideia pode ser elucidada no seguinte trecho musical de um compositor franco-flamengo tardio:

"Adequar a música ao sentido das palavras, exprimir a força de cada emoção diferente, tornar as coisas do texto tão vivas que julgamos telas deveras diante dos olhos [...]"            (Samuel  Quickellberg, cit. in GROUT & PALISCA, 2007, pag.209)

Reservada porque provavelmente restringia-se à casa de um determinado mecenas, onde as novidades dessa nova prática seriam a inclusão de cromatismos, ornamentos, variedade modal e contrastes rítmicos. A Teoria dos Afetos, no Período Barroco, foi possivelmente uma evolução da Música Reservata. Os dois períodos desenvolveram o mesmo princípio mas, a diferença fundamental entre eles está no método de aplicação , pois na Renascença  "a harmonia é mestre da palavra" e no Barroco "a palavra é mestre da harmonia" como nos diz Monteverdi. O Barroco possuía afetos extremos saindo de uma violenta dor para um trabalho exuberante.  É fácil perceber que a representação dos afetos evidencia um vocabulário mais rico do que aquele que era feito na música reservata.

Sabe-se que a teoria ou doutrina dos afetos deu-se no período Barroco por volta do século XVII, baseada em uma antiga analogia entre música e retórica (disciplina que tem por objetivo estudar a produção e análise do discurso). A inovação do recitativo deu aos teóricos uma ampla ocasião para observar o paralelismo entre a música e o discurso (BUKOFZER, 1947, p.388). Os músicos do Período Barroco buscavam novas tendências de expressão musical e, sobretudo nesse período apareceu uma de suas principais características, a busca por uma forma de linguagem musical que servisse ao texto de maneira que os sons pudessem exprimir de fato os sentimentos, como amor, ódio, felicidade etc.

Rene Descartes (1596-1650) foi um pensador que influenciou profundamente o pensamento do Período Barroco. Em 1638, compôs sua primeira obra teórica, intitulada Compendium Musicae, com base na obra Institutione Armoniche do teórico Gioseffo Zarlino (1517-1590), ele trata da música pela razão, pela mensuração matemática da afinação dos modos, procura situar o interprete e seu publico como "almas sentindo música". Na sua ultima obra, o tratado As Paixões da Alma, que foi publicado em 1649 na Holanda e na França, para responder as perguntas da princesa Palatina. Descartes descreve vários estados emocionais e seu processo no corpo humano.

Entretanto, J. Mattheson, um importante tratadista do barroco, na obra Der Vollkommene Capelmeister, diz:

“A respeito da doutrina dos temperamentos e emoções, especialmente Descartes tem que ser lido (o tratado das paixões da alma ) por que ele fez muito em música. Esta obra serve-nos perfeitamente, ensinando a distinguir bem entre as sensações do ouvinte e como as fontes do som o afetam.” (HARRIS,1993, Dissertation Services)

As Paixões da Alma se divide em três partes, a primeira fala das paixões em geral e de toda a natureza do homem, a segunda fala das seis paixões primárias, o número e a ordem das paixões, e a terceira sobre as paixões específicas.

“As percepções que se referem somente à alma, aquelas cujos efeitos se sentem como na alma mesma e de que não se conhece comumente nenhuma causa próxima à qual possamos relacioná-las: tais são os sentimentos de alegria, de cólera e outros semelhantes, que são às vezes excitados em nós pelos objetos que movem nossos nervos, e outras vezes também por outras causas. “ (Descartes, art.25)

Neste trecho do artigo 25, Descartes fala das percepções que relacionamos com a nossa alma.

Os teóricos que tentaram classificar e sistematizar os recursos da Teoria dos Afetos foram principalmente os alemães. A discussão da Doutrina (ou teoria) dos Afetos começou com os trabalhos de Nucius, Cruger, Schonsleder e Herbst, e tornou-se mais explicita com Bernhard, finalmente se cristalizando de forma definitiva com Vogot, Mattheson, e Scheibe ( BUKOFZER, 1947, p.388).

Johan Mattheson (1681-1764) na obra Der Vollkommene Capellmeister de 1739, aborda os afetos na música, com indicações composicionais, e expõe uma nova visão, onde dá ênfase à necessidade do compositor conhecer os afetos e as paixões. O compositor de musica instrumental deveria usar o recurso adequado para cada sentimento como, por exemplo, para a alegria, utilizar intervalos largos,  e para tristeza intervalos pequenos.

Joachin Quantz (1679- 1773) escreveu Versuch einer Aneisung die Flote Tranversiere zu Spielen (1752) que apresenta elementos de técnica e estilo de execução para flauta, podendo servir para música vocal e para outros instrumentos. Para ele, o bom interprete deve saber reconhecer as representações dos afetos, e menciona como fazer esse reconhecimento.

Os afetos e as tonalidades foram também discutidos pelos autores Marc Antonie Chapentier, mestre de capela da Sainte Chapelle de Paris, na obra Règles de Composition, e Jean Phillipe Rameau (1683-1764), compositor e teórico francês no seu Traité de I’Harmonie de1772. O próprio Mattheson na obra Das Neu-eroffnet Orchestre (1713) abordou extensamente o assunto.

Quanto aos ornamentos, foi bastante conhecido o trabalho de Francesco Geminiani (ca.1687-1762) intitulado The art of playing on the violin, com orientações especificas sobre ornamentos e afetos.

Nem todos os compositores tenham chegado a um consenso em relação às tonalidades e sua influência  nos afetos, tornando desse modo a concepção dos afetos na música um conceito que tende para uma interpretação pessoal. Mas, o que devemos portanto salientar é a essência desse pensamento , ou seja ,a música e quais emoções ela pode despertar no ouvinte e os recursos composicionais que são mais adequados para evidenciar a representação dos afetos.


TABELA1


Relação entre tonalidade e os afetos por Mattheson:


Ré menor
Devoto, calmo, fluente grandioso
Sol maior
Insinuante, falante
Sol menor
Serenidade, amabilidade, vivacidade
Dó menor
Amável e triste
Lá menor
Lamentosa, respeitável e serena
Fá menor
Suave, serena, profunda e pesada
Mi menor
Pensamentos pesados, aflitos e tristes
Si bemol maior
Divertido e exuberante
Dó maior
Rude e atrevido
Mi bemol maior
patético
Fá maior
É capaz de exprimir os mais belos sentimentos do mundo
La maior
Paixões lamentosas e tristes
Ré maior
Penetrante e teimosa
Mi maior
desespero
Si menor
Bizarro, melancólico
Fá sustenido menor
Tristeza, aflição


 (MATTHESON,1713)


TABELA 2


CORRESPONDENCIAS ENTRE TONALIDADES E AFETOS – MODO MAIOR



Mattheson
Quantz
Rameau
Charpentier
Dó  maior
Rude
Alegre
Alegre
Guerreiro
Ré maior
Alegre
Alegre
Alegre
Alegre
Mi maior
Penetrante
Alegre
Grandioso
Questionador
Fa maior
Generoso
Prazeroso
Majestoso
-
Sol maior
Amoroso
Prazeroso
Afetuoso
Doce ,alegre
Lá maior
Brilhante
Alegre
Brilhante
-
Sib maior
Magnífico
Alegre
Intempestivo
-
Mib maior
Choroso
Cantábile
-
-





TABELA 3


CORRESPONDENCIAS ENTRE TONALIDADES E AFETOS – MODO MENOR



Mattheson
Quantz
Rameau
Charpentier
Dó  menor
Triste
Melancólico
Lamentoso
Triste
Ré menor
Devoto
Terno
Compaixão
Devoto
Mi menor
Aborrecido
Terno
Terno
Lamentoso
Fa menor
Doloroso
Melancólico
Lamentoso
-
Sol menor
Encanto
Terno
Afetuoso
Magnífico
Lá menor
Honroso
Melancólico
-
-
Si menor
Melancólico
Melancólico
Terno
Melancólico


 (GATTI, 1997,pag. 54)








REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
BUKOFZER,Manfred F. Music in the Baroque Era – From Montiverdi to Bach. w.w.Norton e Company.Icn.New York 1947

DESCARTES, Rene. O tratado das Paixões da Alma,1649. Retirado do www.4shared.com

FUBINI, Enrico. Estética da Música. Lisboa, edições 70,  2008

GATTI, Patrícia, A expressão dos afetos em peças para cravo de François Coupeirin (1668-1733). Universidade Estadual de Campinas – Instituto de Artes.
GROUT, Donald V. e PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Tradução: Ana Luiza Maria, Lisboa, Gradiva,2007. Citação de  Samuel Quickellberg, cit. in wolfgang  Boetticher,Orlando di Lasso ,1,240.
 
HARNONCOURT, Nicolas. O discurso dos Sons – caminhos para uma nova compreensão musical. Jorge Zahar editor LTDA, Rio de Janeiro, 1998.
MATTHESON, Johannes. Das Neu – eroffnet Orchester. Tradução: Lucia Carpena e Renati Sudhaus (Nov./2000). Hamburgo,1713.
MATTHESON, Johannes.  Der Vollkommene Capellmeiter. Tradução e comentário de Harriss Ernest.EUA;UMI – Dissertation Services, Michigan,1993. UMT.
SALGADO, Rafael. doutrina dos afetos. Salgado.weebly.com/122436

10 comentários:

Unknown disse...

onde eu encontro mais material falando mais sobre o assunto é muito dificil achar. eduodisseia@hotmail.com

Unknown disse...

onde eu encontro mais material falando mais sobre o assunto é muito dificil achar. na pratica

eduodisseia@hotmail.com

Unknown disse...

Também estou procurando material falando mais deste assunto o único que eu encontrei foi em alemão

Mauricio de Moraes Corrêa disse...

Boa noite. Também Procuro mais sobre teoria dos afetos mas não encontro nada. Teria como me dar uma força???? Obrigado

Mauricio de Moraes Corrêa disse...

Meu e-mail é mauriciommcorrea@gmail.com

Unknown disse...

Olá,

Gostaria de saber o autor do texto, para poder fazer uma citação!
É o mesmo nome de quem postou?

Grata!

Unknown disse...

Olá!
Como autora citada no blog, gostaria de postar aqui a informação completa sobre a tradução que fiz do capítulo de Mattheson que trata das tonalidades e dos afetos atribuídos a ela:

“SOBRE A QUALIDADE DAS TONALIDADES E SEU EFEITO NA EXPRESSÃO DOS AFFECTEN” (Johann Mattheson, 1713)- Tradução e breve introdução. Revista Música, v. 13/no.1, p. 219-241, ago. 2012.

O link para acesso é: http://www.revistas.usp.br/revistamusica/article/view/55111/58748

Um abraço a todos e boa leitura!
Profa. Dra. Lucia Carpena
UFRGS

Anônimo disse...

Obrigado por postar um assunto de tão grande importância, que é sobre os afetos no mundo da Música. Antonio Carlos - Multi-instrumentista.

Dave Caldas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

legal